533 Palavras


- Foi você quem quis aquilo! – gritei com ela.

- Sim, mas no final, a decisão foi sua, senhor Paulo.

É papel dos pais perdoar os filhos pelas suas péssimas escolhas para bichos de estimação. Mas não a desculparia, muito menos a sua mãe, por terem acolhido um jelle em nossa casa. Eu o detestava, e odiava ainda mais aquela voz tão serena que parecia estudada – eu sabia que os tradutores são programados para simular o estado emocional da criatura que os usa, mas desejava que sua petulância fosse algum defeito no aparelho.

Márcia avaliava meteoros e seu potencial para a exploração econômica, ou seja, estava a dezenas de milhões de quilômetros da estação no momento do acidente. Eu tentava relembrar os detalhes, mas só conseguia ouvir: o grito de uma mulher do outro lado do corredor e o suspiro débil que se seguiu ao encontro entre o transportador de carga e minha filha, logo depois do estrondo gerado pelo choque de dois corpos tão distintos em massa e velocidade. Seria mais fácil se eu soubesse o instante exato em que minha atenção foi desviada, o objeto que capturou meus pensamentos, o intervalo que se passou desde que ela saiu do meu lado e correu para ver algo que só chamaria a atenção de uma criança. Se eu soubesse – ou lembrasse de – algum destes detalhes, teria coragem de dizer a Márcia que a Fatinha estava viva graças a aparelhos e sua recuperação era tão improvável que mesmo um físico como eu, acostumado às medidas mais ínfimas da matéria, consideraria seriamente o uso da palavra "impossível" entre as outras, escolhidas com cuidado e desalento, para informar a minha mulher que nossa filha estaria morta em algumas horas.

Dias antes e mais de uma vez, o jelle havia me alertado de que sofria de uma doença terminal típica de sua espécie. Claro, eu não havia contato a Fátima – toda a estúpida ideia sobre a necessidade de uma criança vivenciar no fim de seu animal de estimação uma forma de amadurecimento, sim, eu a havia considerado. Junto ao óbvio desejo de, finalmente, me ver livre daquele ser, cuja espécie havia sido traficada aos milhões para entreter crianças entediadas durante as longas ausências de seus pais.

- Há uma forma, senhor Paulo. – ele disse – De salvar a mim e talvez a sua filha.

São proibidas as visitas acompanhadas por não-humanos, então o levei dentro de uma bolsa resistente a nanovistorias e o libertei na cama, ao lado do rosto dela. O jelle se contorceu, seu aspecto translúcido, maleável e repulsivo espalhou-se pelo rosto de minha filha e adentrou silenciosamente a boca entreaberta pelo respirador.

Ouvi mentamente, e mais uma vez, sua voz delicada, que não parecia me acusar, mas apenas lembrar as consequências de minha atitude.

- Você não entende – praticamente sussurrei – É isso que nós, homens, fazemos: escondemos nossas decisões mais egoístas com alguma desculpa – a palavra brincou na minha língua enquanto meus olhos pareciam, súbito, mais úmidos sob as pálpebras fechadas – altruísta.

Ela me abraçou, os dedos finíssimos em meu pescoço, o rosto pequeno, redondo e macio, tão infantil e conhecido que desejei que ainda houvesse algo de Fátima naquele corpo além de memórias assimiladas.

6 comentários:

Aguinaldo disse...

Uma boa história, com um apelo dramático bem forte...
Mas a execução ficou confusa. Até entendo o que você tentou fazer, justapor dois momentos narrativos diferente para culminar no momento crucial, infelizmente não funcionou... :(
Por ex: Você começou com 'gritei com ela', mas quem é ela? A princípio pensei na mãe, mas relendo pode ser a Fátima. E é uma discussão que não se conclui e que parece não ter relação com a lembrança do acidente que vem a seguir...

Marcel Breton disse...

Aguinaldo,

Concordo plenamente - na verdade, confesso que não consegui resolver este problema a tempo de enviar o conto, e realmente ele me incomoda bastante. Os dois momentos não se integraram como deveriam, ficaram mal delimitados.
Assim que acabar a votação, vou postar uma versão revisada no meu blog recém-criado, mas mantendo a limitação de 550 palavras.
Obrigado pelo comentário! Quando eu o postar novamente, gostaria de ouvir sua opinião.

Marcel.

DanielFolador disse...

Como chegaram a comentar, a discussao do inicio estah confusa e parece nao bater com o resto do conto. A parte da doença do Jelle tbm ficou confusa tbm

Lucas L. Rocha disse...

Achei o conto bem confuso na sua execução. O desenvolvimento dele poderia ficar mais claro pro leitor. Eu precisei ler duas vezes, e ainda assim acho que não entendi a história plenamente.

Carlos Relva disse...

O conto é interessante, Marcel, mas os diálogos ficaram confusos. Com quem Paulo está falando no início da história?

Também não consegui ver o altruísmo, tema da rodada. O jelle disse que salvaria a si mesmo e à menina, mas vemos no final que a criatura apenas ocupou o corpo da criança moribunda. Onde está o altruísmo nisso? Acho que seria mais interessante se houvesse uma simbiose, com os dois seres sobrevivendo ao final do processo.

Marcel Breton disse...

Aguinaldo, Daniel, Lucas e Carlos:

Obrigado pelos comentários e críticas, elas me ajudaram a escrever novas versões do conto e espero que tenha conseguido corrigir algumas de suas falhas. Postei a nova versão no meu blog (ainda nem trabalhei no tema dele, está bem cru...) primeiro: http://ovelhaseletricas.blogspot.com/2009/08/conto-os-deveres-da-paternidade.html E descrevi as alterações que fiz.
Quando a votação na Fábrica se encerrar, vou postar lá também - senão vira bagunça se a votação estiver em andamento e um participante decide postar uma nova versão do conto...

Abraços!
Marcel.

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