- Quero voar.



Dito de forma lacônica, aquilo fez emudecer o jovem feiticeiro. Lá fora continuava a chover, encharcando o solo da floresta, que começava a se cobrir de folhas amarelas e vermelhas. Era quase outono.


- Não me convida a entrar? – perguntou o recém-chegado. Seus ombros preenchiam a largura da porta. O feiticeiro recuou para lhe dar passagem, franzindo o cenho diante daquela sem-cerimônia.


- O que deseja? – perguntou.


- Eu já disse. Quero voar – repetiu o senhor da guerra.


Um silêncio se abateu sobre os dois enquanto se mediam com o olhar. O feiticeiro era alto, porém magérrimo. Seu pescoço emergia vulnerável da túnica puída, e sua casa era pobre e rústica. A única riqueza era a que não se via: o que só se podia supor pelos molhos de ervas sobre a lareira, pelos potes de conteúdo misterioso nas prateleiras ameaçando cair. Fora isso que trouxera o cavaleiro à sua presença.


- Quer voar. – O feiticeiro quebrou o silêncio. – Por uma noite? Três, talvez, para visitar uma donzela? Ou sete noites, a cada lua nova?


- Não – respondeu o cavaleiro. – A vida toda.


- Toda? – alarmou-se o jovem.


- Toda – respondeu o outro. Tirando uma bolsa do cinto, ele a atirou sobre a mesa, o som deixando adivinhar um bom punhado de ouro que, no entanto, o feiticeiro não fez menção de tocar.


- A vida toda é impossível – disse. – Não tenho esse poder.


- Então consiga. – Um novo clangor de metal: dessa vez a espada deixara a bainha. – Nos seus livros, no inferno, pouco importa. Quero voar!


Fria como gelo, a ponta da arma tocou a garganta do jovem. Ele a afastou, olhos fixos no cavaleiro, como se quisesse dissuadi-lo de sua ideia ruim.


- Tem um jeito – disse. – Mas você não vai querê-lo.


- Eu perderia minha alma?


- Não.


- Então eu quero – disse o homem da espada.


O feiticeiro deu de ombros e se ergueu, indo até a lareira, onde pôs água a ferver. Dirigiu-se então à fila de prateleiras e passou a abrir e fechar potes, de cada um tirando ingredientes que atirava na panela. O cavaleiro o contemplava de braços cruzados, tranqüilo na certeza de que não seria traído. Em todo o vale e nas montanhas, era sabido que um juramento muito antigo impedia o feiticeiro de mentir.


A poção ferveu durante um quarto de hora, quando foi posta a esfriar. Impaciente, o cavaleiro dava voltas pela sala, enquanto o jovem escrevia em seu grimório. Assim estiveram uma hora inteira. Então, o feiticeiro coou num pano o conteúdo da panela, estendendo ao senhor da guerra uma taça cheia de um líquido turvo.


- É a poção? – indagou o cavaleiro.


- É a poção – confirmou o jovem.


- Me fará voar?


- Enquanto você viver – foi a resposta.


O cavaleiro levou a taça aos lábios e bebeu, seu pomo-de-adão subindo e descendo até que o conteúdo se esvaziasse. Devolveu a taça e sorriu – um último sorriso antes que sua boca se abrisse, deixando escapar um som agudo que repercutiu nas quatro paredes. Seus braços, de mãos e dedos subitamente alongados, se estenderam para abarcar o ar, e ele se elevou num impulso, atravessando a janela rumo à escuridão.


- Tenha uma boa vida, morceguinho – desejou o feiticeiro.

1 comentários:

Ana disse...

Então, cá estou eu para elogiar e muito seu conto um tanto quanto simpático! Como uma lufada de ar nos olhos, leve, agradável e até mesmo de uma mistura de infantilidade e jocosidade pelos quais é permeado, assim é sua escrita neste texto! Meus parabéns, tia Ana! =)

Postar um comentário