546 palavras
O cheiro de sangue e os urros enchem a minha cabeça, deliciosos e
torturantes ao mesmo tempo. Grito de prazer e de angústia. Acordo com
Kalenna ao meu lado, preocupada.
"Irmã, tudo bem? Você gritou..."
Contenho o impulso de abraçá-la. Tinha sido apenas um sonho... A irrealidade
desse pensamento dura apenas um instante. Sou uma profetisa, o Oráculo do
Povo-Macaco. Não sonho apenas.
"A Sabedoria visitou-me esta noite."
Ela para de preparar a minha ablução matinal e me olha, temerosa. A profecia
que vem entre o pôr-do-sol e o amanhecer é muito mais forte e precisa do que
a que atinge os despertos.
"Recebi um aviso e chegou a hora de finalmente despertarmos a Fúria. O tempo
dos homens-águia está terminando."
Como esperava, minha irmã apenas concorda e sai da cabana. Vai avisar os
demais sobre minha profecia. Em breve, terei que explicar o que aconteceu.
Com um suspiro, termino de me lavar sozinha e sirvo minha refeição de frutas
secas.
Quando estou quase terminando, Maleek, o Ancião de Todos, entra na cabana,
seu passo arrastado e lento. Logo atrás, os demais anciões da tribo. Faço as
saudações e os convido para partilhar a refeição. Cumpro todas as
formalidades para Maleek fazer a pergunta que o trouxe aqui.
"Sacerdotisa, sua irmã avisou sobre a visita. Então é verdade?"
"É, venerável. A Sabedoria mostrou que é tempo de nos libertarmos. Os filhos
de Margoth, o povo-águia, virão buscar a resposta para a sua sucessão e o
Oráculo-do-Sono respondeu que não haverá sucessão. O Povo-Macaco deve
retomar o que é seu."
"Isso irá custar a vida de muitos..."
Kalenna está parada na porta, em silêncio. Sinto um nó na garganta, pois sua
morte foi a primeira que vi. Porém, não há outro caminho.
"Sim. É o preço."
Maleek pensa por instantes.
"Faremos a vontade da Sabedoria. Lutaremos."
A aldeia se prepara em silêncio. Os homens afiam machados e as mulheres
apontam suas lanças. Todos estarão prontos, mesmo Kalenna, quase uma menina
ainda. As crianças ajudam, levando artefatos de um lado para o outro. Nem os
pequeninos serão poupados.
Mesmo na refeição, não há sons. Quando terminamos, avisto a primeira sombra
no céu. São os homens-águia chegando, um bando completo, doze deles. Eu
estou pronta, o colar azul da Visão em meu pescoço, os olhos pintados de
dourado.
Estamos ao redor da fogueira, o ar frio arrepiando meus pelos. Eles pousam e
vem em minha direção. O líder deles sorri e olha nos meus olhos.
"Como é feito há milênios, viemos buscar a resposta à nossa pergunta,
Profetisa. É quarta noite do plenilúnio, então diga: qual dos filhos de
Margoth irá sucede-la?"
Não respondo nada e Kallenna enfia sua lança no peito dele. Os malditos nos
consideram inferiores, indefesos, incapazes de lutar. A carnificina que
acontece mostra como estavam errados ao pensar isso. São doze guerreiros,
mas foram pegos de surpresa. Lutam como podem, com bicos, garras e a força
de suas asas.
O triunfo é nosso, como prometido. Tenho o corpo sem vida de Kallenna no
colo, o preço que paguei. Sentindo ainda o seu calor, olho ao redor.
A terra manchada de sangue. Penas cinzentas tingidas de vermelho no ar frio.
Carne e ossos espalhados.
E eu sorrio ante a beleza desse quadro que chamarei de 'Liberdade'.
3 comentários:
Mais um texto dessa intrigante saga dos homens-macacos e sua luta pela liberdade contra os tais homens-águias. Gostei do que li, o texto tem um conflito que é resolvido, tem informações acerca da personagem-narradora e chega um final condizente. Mais um bom texto de Ana Cristina...
Uma versão alternativa do mini anterior... mas sem o mesmo impacto... :(
Mas leve em consideração que tenho uma birra terrível contra personagens ou autores que fazem spoillers... :)
Não posso dizer se o texto é tão pior que o outro, acho que não. Mas a repetição da estória me deu esta sensação. E de quebra ainda tirou um pouco o impacto do anterior, que foi perfeito para o momento. Como naquele desenho animado antigo: Mau-sapão. Mauuuuuu sapão!!!
Postar um comentário