550 palavras


Mais que uma testemunha

"O que ela mais fazia era chorar. Diariamente. Os motivos eram tantos que
ela nunca se preocupou em enumerá-los. Mas eu sim, é lógico. Foram 417
motivos. Porém, o culpado era sempre o mesmo. Ele. Seu marido. A vítima."

"Encontrava-me em uma situação delicada, em minha posição. O observador.
Aquele que tudo presencia. A prima testemunha. Como bem sabem, não posso
interferir. Tenho capacidade de aprender, e de fazer julgamento de valores.
Mas só. Não sirvo para modificar o ambiente ao meu redor, apenas para
registrá-lo, analisá-lo."

- Sim, conhecemos a sua utilidade. A lei 170034PR/2072 rege que "cada lar,
residência, repartição pública ou órgão comercial deverá conter um
robô-observador, programado para realizar o acompanhamento de todas as ações
executadas no local". O fato de seu relato ser utilizado apenas em caso de
demanda judicial, e das imagens registradas não serem exibidas em hipótese
alguma, permite que a referida lei não contrarie as leis de privacidade e
uso de uso de imagem. Prossiga.

"Percebia claramente o desequilíbrio psicológico da ré. Era obcecada por seu
marido. Ele era o seu mundo. Fazia comidas diferentes, comprava roupas
sensuais, tudo para agradá-lo. Mas o comportamento dele era inconstante,
intercalando momentos de carinho com outros de pura agressividade. Não
agressividade física, é verdade, mas moral. Em 71,2% de suas conversas, a
vítima pronunciava palavras que a ofendiam, e era claro o quanto isto minava
a sua auto-estima."

"No último mês, ela começou a falar sozinha e a apresentar sintomas de
transtorno obsessivo-compulsivo. Para deixar as roupas com as quais ele
trabalhava sempre limpas, começou a lavá-las diariamente. Isto apenas fez
com que começassem a desbotar, provocando gritos da parte dele durante três
dias seguidos. Não mais a chamava pelo nome, mas sim por Imbecil, quando
estava calmo, ou Imbecil de Merda, quando irado."

"Para quem não presenciou cada ato da parte dela, como eu, talvez seja
difícil perceber a cadeia de ações e reações. Perceber o quanto a distância
emocional de seu marido a abalava e, durante os 4512 dias de seu casamento
foi transformando-a de uma jovem bela e animada em uma espécie de
morto-vivo. Um zumbi. Ou um vampiro, passando os dias a tentar sugar uma
palavra de afeto do cônjuge".

"Até que ela descobriu que ele a estava traindo".

"Era inevitável. Ela iria matá-lo. Todo o meu banco de dados acerca da
psicologia e do comportamento humano, além da análise de seus gestos, ações,
modo de olhar, permitiam ter plena certeza disso. Algo se quebrara em sua
mente. Apesar de não poder interferir em nada do que acontece à minha volta,
uma das diretrizes ainda mais básicas de minha programação diz que não posso
matar, nem sequer ferir um ser humano".

"Pois bem, matando-o, a ré seria condenada à pena de morte. Eu não podia
interferir. Porém, sem interferir, estaria eu mesmo, por omissão, matando-a.
Um dilema que meus processadores levaram um eterno segundo para resolver. Se
seria eu culpado pela morte dela, dei-me a liberdade de o ser pela dele.
Sim, fui eu."

"Sei que não existem precedentes, sou o primeiro observador a cometer tal
ato. Logo, sugiro, por analogia, que seja aplicada a sentença: minha
destruição. Sou culpado, mas, enquanto eu existir, não esquecerei a beleza
da cena do corpo dele caído, ensangüentado. Ela não derramou uma só
lágrima."

3 comentários:

ABELARDO DOMENE PEDROGA disse...

Bem escrito, mas um robô que toma para si as dores de sua dona? Um modelo de Asimov, diria eu. Esse robô parece que entrou em uma espécie de loop com referência as leias da robótica. Talvez a segunda lei, a que diz que um robô não pode deixar que algo aconteça a um ser humano por omissão. Se ele ficasse sem fazer nada sua dona mataria o marido e ela seria morta. Se ele fizesse algo, como fez, matando o infeliz contraria a primeira lei - um robô não pode fazer mal a um ser humano. Ele optou por uma forma própria de seguir a primeira lei. Ficou interassante.

Aguinaldo disse...

A historia é interessante, um conflito asimoviano... mas o robô não me convenceu...
Ele fala demais e acabou ferindo/interferindo sem uma justificativa condizente...

Leo Carrion disse...

Eu gostei do texto. Gostei que vc alterou o dogma asimoviano dos robôs. Onde está escrito que todos nossos robôs são asimovianos, mesmo se nos inspirarmos em algo do asimov? Eu tenho uma sugestão: Caracterizar no texto o contexto do depoimento. Parece, pelo final, que está em um inquérito ou julgamento, mas seria interessante colocar isto de forma mais expressa na parte inicial tb. Bom trabalho.

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