546 Palavras
Ao se aproximar da porta do quarto Lucília escutou o tropel dos pés de Joyce, ainda que pouco audível. Não era a primeira vez que percebia isso, mas ao abrir e entrar encontrou a menina ajoelhada, apoiada nos tornozelos, diante da banquetazinha de brinquedos. Ali estavam, enfileirados lado a lado, o soldadinho de chumbo, a dançarina, o Dumbo e os diversos monstrinhos e alienígenas.
"Engraçado", pensou a moça. "O que será que ela está aprontando e não quer que eu veja?"
— Oi, Joyce. O que é que você está fazendo?
— Estou passando a tropa em revista — disse a menina de oito anos. — Coloco todo mundo alinhadinho...
Lucília olhou o alienígena de anteninhas e grandes bochechas, gordo como um Buda, que parecia de porcelana e tinha um olhar muito maroto.
— Sempre acho tão engraçado esse que você ganhou da colega...
— Ah, é... — e a menina sorriu amarelo.
— Eu vim te chamar para lanchar, não está com fome?
— Tou sim, eu já vou...
— Não demore — e Lucília deu as costas e saiu do quarto.
Joyce fez um ligeiro afago ao pequeno alienígena de louça, correu para a porta, escutou os passos da mãe se afastando e retornou para junto dos bonecos:
— Foi por pouco, Itar. Eu vou ter que lanchar, você me espera, tá bem?
— Não demore! Estou cansado de ficar sozinho!
— Eu volto daqui a pouco!
Ao deixar o quarto, Joyce não pôde deixar de pensar na sorte de seu amigo alienígena perdido na Terra: não se alimentava de sólidos, líquidos ou pastosos mas apenas de ar. O seu metabolismo dependia exclusivamente da expiração e da inspiração. Com isso, a sua manutenção ficava muito simples. E ele também podia disfarçar-se de inanimado, adquirir a textura da porcelana.
Há quinze dias o uranídeo morava no quarto da criança. Ela o encontrara no jardim e, embora ele se fingisse de estátua, não pudera enganá-la; até porque Capiau, o gato vira-lata, xerimbabo da menina, o rebolara pela terra, desconfiadíssimo. Joyce pensara tratar-se de um gnomo caseiro e levara-o para o quarto, fazendo-lhe um ultimato:
— Vamos, fale comigo, eu sei que você é vivo! Se não falar eu te entrego aos meus pais!
Itar então falara, revelando sua origem num distante sistema solar, que a menina não tinha como identificar com seus conhecimentos infantis. Ela o protegera, fingindo tratar-se de uma estatuazinha, mas não pudera fazer mais nada: a nave que trouxera o visitante fôra obrigada a se evadir da Terra, acossada pela Força Aérea e com a fuselagem danificada. Antes de doze anos terrestres não poderiam voltar, explicara Itar tristemente.
— Mas não tem outros de vocês? Tem tanto disco voador na atmosfera...
— Não é tão simples assim, da minha raça era só aquela nave na Terra, e meu comunicador está inutilizado, por causa daquela fera que o mordeu...
(Referia-se ao buldogue dos vizinhos)
Naquela noite, depois de rezar pelos pais e pelo irmão mais velho, pelo Capiau e agora também pelo Itar, deitada sob a colcha, ela pôs-se a refletir, com seu cerebrozinho de oito anos, na imensa responsabilidade que pesava sobre todo o seu futuro: ocultar e proteger uma pessoa de outro mundo, obrigada a viver escondida no seu. Sua própria infância comprometida por aquela armadilha do destino. E adormeceu com a certeza de estar sendo uma menina boazinha.
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4 comentários:
Gostei da história, mas acho que faltou trabalhar mais a relação da menina com o alienígena, ficou muito superficial, e na minha opinião seria a alma do conto...
O desenvolvimento está bom, mas eu cortaria as explicações...
Legal o conto, mas a ideia do altruismo me pareceu meio forçada.
A ideia me pareceu boa, mas também pouco desenvolvida. Como já foi dito, também achei a relação meio superficial entre menina e alienígena.
Um conto muito bonito e singelo, Miguel, parabéns! Lembra muito a cena de ET, o extraterrestre, quando a mãe dos meninos entra no quarto e pensa que o alienígena é um boneco da filha.
Talvez a criaturinha não precisasse assumir a textura de porcelana. Sua pele poderia realmente parecer porcelana! Isso deixaria o conto ainda mais simples.
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