539 palavras

Com um floreio, o japonês terminou de traçar o último kanji e acrescentou com o pincel fino a tradução do haikai. Meticuloso, guardou a tinta, os pincéis e a pedra de tinta. Avaliou o trabalho e, satisfeito, me entregou a folha de papel Washi. Aceitei o presente com reverência e apreciei o poema/arte, mesmo sem compreender o significado.

A luz entrava pela janela e aquecia a sala. Sobre o tapete um lenço de seda branco com dragões vermelhos estava esticado entre mim e o visitante.

- E o que posso fazer pelo senhor?

- Srta Samantha, preciso encontrar uma velha amiga.

- Não seria melhor procurar a polícia, Sr Susanoo.

- Não é rapto nem desaparecimento, portanto a polícia nada faria.

- Mas eu sou apenas uma advogada, não detetive.

O japonês retirou da manga do montsuki um envelope. Desdobrei o papel de seda que continha alguns pelos castanho-dourados.

- Tenho certeza que a senhorita encontrará um meio – Susanoo se levantou e fez uma reverência. – Sayonara.

Permaneci sentada no chão do apartamento, cercada pelos restos do quase-casamento, olhando para os pelos e pensando se deveria começar pelo canil municipal.

-o-

No final, não foi tão difícil. Encontrei uma velha receita na internet e comprei os ingredientes no supermercado do bairro, somente tive que substituir alguns ingredientes que não estavam em acordo com esses tempos de “eco-paranóia”.

Com giz, desenhei no chão da cozinha o hexagrama dentro de um circulo. No fogão, o conteúdo da leiteira borbulhava enquanto adicionava novos ingredientes. Por fim, deixei cair os pelos castanhos que foram sugados com um ´glub’. Fiquei vigiando o hexagrama e esperei.

Tomei um susto quando braços me envolveram e alguém me sussurrou no ouvido:

- Você deveria ficar dentro do circulo. – Uma língua áspera me acariciou a orelha e nas mãos que me abraçavam as unhas cresceram como facas. – Onde está o japonês?

- Estou aqui, ladra.

O abraço se desfez e pude se virar. A mulher estava nua, ou quase, caudas felpudas e douradas lhe envolviam e cobriam quase todo o corpo. Ela se afastou e agora nós três formavam os vértices de um triangulo na cozinha.

- Susanoo-sama, há quanto tempo.

- Muito tempo, desde que me roubou. Mas agora acabou, recuperarei as oito caudas e darei sua pele para minha irmã Amaterasu. – O samurai sacou a espada.

- Velho safado, você só quer me ver nua – a mulher-raposa replicou com falso pudor e deu um passo atrás.

- Espera um pouco! Você não falou em esfolar alguém. – Não sabia o que rolava, mas não iria permitir brigas em minha casa.

- Calada, bruxa!

- Bruxa não! – Aquilo já era demais. Dei um passo à frente, o braço esticado segurando o aerossol. – Sou uma feiticeira! – E disparei o spray de pimenta.

Pego de surpresa e cego, Susanoo recuou até desaparecer através da porta da cozinha para outra dimensão.

- E quanto a você... – a raposa ergueu os braços assustada. – Saia já da minha cozinha, está deixando pelos por todo o lugar. – A yokai sumiu num ‘puff’.

Finalmente sozinha, olhei ao redor. Desenho a giz e pelos no chão, fumaça preta escapando da leiteira queimada, louça suja na pia e mais pelos. Suspirei, precisava parar de mexer com magia.

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