529 palavras



Vovô já estava meio moribundo, sem saber muito bem se ficava no mundo dos mortos ou no dos vivos. Vivia sempre como um elefante na corda bamba, equilibrando-se por algum artifício divino. E eu, olhando-o, só imaginava a hora em que ele finalmente viria para junto de mim.

Certo dia, ele teve um acesso de tosse tão forte que jurei por todos os fantasmas que a hora havia chegado. Ele tentava puxar o ar, mas seus pulmões pareciam congestionados; o fio de vida que o ligava a terra parecia cada vez mais fino e pronto para se quebrar. Com dificuldade, ele se arrastou até um criado-mudo e, de dentro de uma das gavetas, tirou um pequeno frasco de líquido transparente. Bebeu-o com sofreguidão, tomando cuidado o bastante para não beber todo o conteúdo de uma vez, e logo voltou a sentir-se bem.

Fiquei intrigado e, ao me aproximar, olhei para aquele pequeno recipiente transparente: era minúsculo, onde não caberia mais do que um gole de qualquer líquido.

Numa das raras noites em que fiquei na solidão daquela casa com vovô, vi que uma senhora curvada o visitava. Ela tinha um aspecto odioso, cabelos soltos e sujos, dentes podres e uma gargalhada que, se não era maligna, eu não saberia dizer o que era. Andava com dificuldade, arrastando-se e segurando-se em tudo o que via pela frente. “Sua dívida está se tornando cada vez maior, meu velho”, ela disse ao meu avô, tirando da bolsa um frasco idêntico ao que ele tinha no criado-mudo, cheio do líquido que impedia vovô de morrer. “Não se esqueça de nosso acordo, meu velho: sua vida será eterna por mais cem anos a cada um desses frascos que você tão avidamente consome. Pelas minhas contas, este é o décimo terceiro. Estou certa?”. Vovô fez que sim, como se tivesse medo de dizer alguma palavra àquela velha. Olhava-a com um misto de contemplação, tristeza e cautela. “Desperdice uma gota que seja e eu nunca mais voltarei. Você conhece as regras”. E se foi tão veloz quanto veio, encoberta pela escuridão com um sorriso malicioso estampado nos lábios.

Vovô guardou o frasquinho de volta ao criado-mudo, os olhos marejados de lágrimas. Ele tirou uma foto da gaveta e a olhou como se fosse a coisa mais importante do mundo. Aquela mulher curvada e odiosa estava na fotografia, mas ela não ria com escárnio, nem tinha dentes podres ou cabelos sujos. Era uma versão mais nova e agradável dela, abraçando a cintura de um vovô jovem e fazendo a pose para uma foto em sépia. “Eu nunca derramarei uma gota deste elixir”, ele murmurou para as paredes. “Mesmo que você tenha se esquecido de quem um dia foi, eu nunca esquecerei. Viverei para sempre para nos manter vivos. Para poder te ver uma vez mais, mesmo que apenas uma vez a cada cem anos”.

Quis abraçá-lo e dizer que tudo estava bem, mas simplesmente fiquei olhando enquanto ele tomava a última gota do frasco quase vazio. Colocou-o na última gaveta, junto com as outras onze garrafas vazias e a foto amarelada. Cento e vinte anos de sofrimento e solidão. Faz mesmo tanto tempo assim desde que morri?

1 comentários:

liana disse...

Bonito e poético

Postar um comentário